por T. Austin-Sparks
Capítulo 11 – A Voz de Ezequiel (Continuação)
Tendo lançado o fundamento para essas mensagens, porém, fazendo algumas distinções essenciais, especialmente em relação ao simbolismo, à realidade, ao misticismo e à espiritualidade, podemos agora prosseguir, a fim de indicar como Ezequiel e sua mensagem profética se enquadram em nosso propósito básico. Este propósito é mostrar que é possível estar muito familiarizado (“todos os sábados”) ‘com as palavras da mensagem Divina, e, contudo, ao mesmo tempo, perder o real significado, a “Voz”.
Se tomarmos apenas um importante aspecto e exemplo disso, ele irá indicar quão sério é isto, tanto quanto óbvio, para nós que temos a história completa.
Será conhecido, aos que estão familiarizados com ‘Ezequiel’, que uma das características mais comuns desse livro é a maneira de Deus se dirigir ao profeta. Não menos do que 90 vezes Ezequiel é tratado como “filho do homem”.
Não me impressiona muito que, em Hebreus, o termo simplesmente signifique “filho de Adão”, e seja repetidamente usado para indicar um ser humano. Eu me impressiono com duas coisas nesse livro: primeiro, que em nenhum outro caso temos isso como característica em todo o Velho Testamento; e, segundo, a persistente e exclusiva reiteração da designação. Há coisas mais profundas do que essas que iremos ver aqui, na medida em que avançarmos, pois, é no significado profundo das duas coisas observadas que iremos encontrar a nossa mensagem. Este livro é um livro de visões, revelações, apresentações. É um livro de sinais e predições. Em especial, é também um livro de movimentos, atividades e energias. Porém, em todos esses, Deus está se dirigindo a e através daquele a quem Ele invariavelmente chama de “Filho do Homem”. Muito bem, feita, então, esta observação, podemos prosseguir.
As “visões de Deus” que constituem este livro são todas governadas por uma visão inicial e inclusiva.
Não vamos nos mover num estudo do Querubim desde o Jardim do Éden até o livro do Apocalipse – a primeira e a última menção dele. Vamos nos ater a Ezequiel, mas com um objetivo. Junto ao Rio Quebar, o profeta teve uma visão daquilo que tem sido chamado de ‘o trono carruagem de Jeová’, transportado pelo Querubim. O Querubim é uma representação simbólica da criação. Quatro é o número da criação, e aqui temos a representação dos quatros reinos e governos da criação. O leão, rei em seu território. O boi, rei no campo das criaturas domésticas a serviço do homem. A águia, senhora de todo o domínio dos ares. E o homem. É de conhecimento comum que neste simbolismo o aspecto humano é preeminente. O fato de o ‘trono carruagem de Jeová’ estar sendo transportado pelo Querubim serve para mostrar a absoluta soberania de Deus sobre a Sua criação. Esta soberania é principalmente expressada na criação de maneira humana. "O que é o homem? ... Tu o fizeste para ter domínio..." (Salmo 8:4,6). Nos três instrumentos e métodos do governo Divino, isto é, Sacerdote, Rei e Profeta (na ordem do Velho Testamento), o profeta é sempre representado particularmente como o homem. O homem particulariza o discurso de Deus. Por sua própria criação, sendo a “imagem e semelhança” de Deus, o homem fala como representante de Deus. Naturalmente, é verdade que o Sacerdote – o mediador – também é homem. O mesmo é verdade sobre o Rei. Mas esses têm seus próprios simbolismos no leão e no boi, enquanto que o homem particularmente é indicativo do Profeta. O Profeta atua em todo o Velho Testamento, no que concerne a sua função, mas ele só atua de maneira plena mesmo quando o Sacerdote e o Rei estão em fraqueza ou quando necessitem de conselho especial do Céu.
Acho que agora alcançamos o coração de ‘Ezequiel’, onde encontramos, de modo mais pleno do que em qualquer outra parte do Velho Testamento, uma representação da mente de Deus num discurso através de visão, palavra e ação. Este é o porque de o Senhor dizer a Ezequiel: “Filho do homem, diga para o povo de Israel: Eu sou o vosso sinal ..."
Extraímos deste livro o ensino e a verdade de que a soberania de Deus na criação se dá através do homem. O homem – vamos repetir - é representante de Deus em Seu governo, e também é o Seu instrumento na redenção. (Ver Romanos 5:12,19, e 1 Coríntios 15:21.)
Há outro aspecto que deve ser mencionado como sendo essencial nesta particular mensagem, pois, sem ele, o caso todo vai desmoronar. É o aspecto do sofrimento do representante de Deus na redenção. O Profeta invariavelmente é um homem sofredor. O sofrimento para o povo de Deus é uma coisa muito real sempre e onde quer que a função profética esteja em operação.
Isso que acabamos de dizer é a voz do profeta Ezequiel.
Agora estamos aptos para fazer
A ligação entre os dois é amplamente encontrada no nome, com uma diferença. Ezequiel é “filho de homem”. Nos evangelhos temos “O Filho do Homem”. Aqui, novamente, na melhor das intenções, rejeitamos (apesar da língua Aramaica) que se trate apenas e tão somente de ‘um homem’, um dentre as espécies humanas chamado ‘homem’.
Esse é um título escolhido por nosso Senhor como sendo particularmente seu favorito. Ele ocorre oitenta e duas vezes no Novo Testamento, sendo que duas delas vieram de seus próprios lábios. Isso por si só já confere a esse título um significado que é mais do que apenas a de ‘um homem’ comum. Porém, a maior força de sua singularidade é encontrada em suas várias conexões.
Esse título é usado em conexão com:
1. Sua primeira vinda.
2. Sua vida aqui em união com o céu.
3. Seu ministério e obra aqui entre os homens. (Sua autoridade)
4. Sua partida aqui deste mundo.
5. Seu “levantar”; a Cruz.
6. Sua vinda novamente.
7. Sua glorificação.
8. Seu julgamento dos homens e do mundo.
Inclusive e abrangentemente, esse título está sempre num contexto sobrenatural.
Jesus jamais se referiu a Si mesmo como “Filho de Abraão”, “Filho de Davi”, “Filho de Israel”, etc. Isso nos prende ao real significado. Por que Jesus preferiu e amou esse título?
Primeiro, porque ele (o título) vai direto ao coração de Deus, Seu Pai. E, também, porque nos leva para este grande e amável interesse de Deus pelo homem; uma criação na qual Deus tem investido tanto para Sua glória e prazer criacional. Esse título também toca a profunda tristeza de Deus, devido ao homem ter se “perdido”. (ver Lucas 19:10 e 15:4,6,9,24,32). Por conseguinte, é um título redentor; de ‘resgatador do homem’. É um título de universalidade; envolve toda a raça. É mais do que alguma categoria terrena de nacionalidade, cor, língua, temperamento, sexo, idade, cultura ou zona. Nisso consiste a “Voz” do maior de todos os profetas; é “a voz do Filho do Homem”. (João 5:27-29).
Assim, com uma vasta matéria sugerida, chegamos ao nosso ponto particular. Por que Israel não ouviu essa voz, embora tenha ouvido as palavras todos os sábados, e também ouvido as palavras de Jesus por mais de três anos? Há duas respostas, ou dois fatores para a mesma resposta.
Um foi o preconceito nacional e exclusivo deles.
O horizonte deles incluía apenas Israel, sendo que todos os demais eram considerados “cães”, forasteiros, inferiores. Eles tinham perdido a visão e a vocação em relação às nações. Eles haviam limitado Deus apenas aos judeus, ao Judaísmo. Pior ainda, criam que somente eles eram justos, e que todos os demais eram “pecadores dentre os gentios”. Os gentios não eram pessoas com os quais os judeus se importavam; na verdade eles se importavam apenas consigo mesmo, na qualidade de Israelitas. Daí, qualquer coisa que não se conformasse à exclusividade deles era considerado anátema: mas Jesus não se conformou! Ele se recusou ser enredado pelas restrições legalistas deles, ou seja, o ‘fardo pesado que eles colocavam sobre as costas dos homens’. Jesus quebrou esse legalismo contra o qual Ele, mais tarde, arremessaria o Seu grande apóstolo Paulo, como um machado de batalha. O preconceito, nascido da justiça própria, irá sempre resultar em cegueira, confusão e limitação.
Mas há outro fator nessa incapacidade deles de ouvir; o último mencionado em relação ao ministério do profeta.
A ideia de o Messias ser um homem não era estranha para os judeus. Quando Jesus estava em popularidade com a multidão, eles estavam a ponto de aclamá-lo Messias. Porém, um problema e uma afronta acabou com o entusiasmo deles, e também com o entusiasmo dos próprios discípulos, quando Jesus introduziu o tema da Sua morte estar se aproximando, e seria por ‘levantamento’, isto é, por Cruz. A palavra que expressou a reação deles a esta intimação foi “ofendidos”. O ponto foi alcançado quando todos, até mesmo os seus discípulos, perderam a confiança nele. Um Messias sofredor? "Longe esteja de Ti tal coisa, Senhor! Isso nunca te acontecerá!” "O Filho do Homem deve ir...”, mas não dessa maneira! Assim, a multidão mudou a sua mente e perguntou: “Quem é esse Filho do Homem?” (João 12:34). A indisposição e o despreparo para aceitar a Cruz, "a comunhão de Seus sofrimentos", certamente irão cegar e ensurdecer a pessoa no tocante ao pleno conhecimento do Senhor, e irão impedir a plenitude do “Novo Homem”. O movimento do homem Adão para o Homem Cristo é sempre por meio da Cruz. O ouvido tem que ser um ouvido crucificado, para que possa ouvir “a Voz do Filho do Homem”. Enquanto a Cruz não separar o velho do novo, o natural do espiritual, não haverá a faculdade para se ouvir “aquilo que o Espírito diz”.
Palavras, sim, palavras; ano após ano; mas nada de a ‘voz’ ser realmente ouvida.
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