por T. Austin-Sparks
Você terá lido muitos livros e ouvido muitos discursos sobre o clássico Hebreus onze: "Os heróis da fé"; "O rol dos que têm fé"; e é de se duvidar que este capítulo já tenha sido usado, no todo ou em partes, sem que seja para servir de exemplo de estímulo à fé. E com razão. Porém, poucas vezes ouvimos ou lemos alguma coisa sobre este capítulo que tome todo o contexto da carta como o seu verdadeiro objeto. O capítulo normalmente é tomado de forma isolada, juntamente com as primeiras palavras daquilo que geralmente é acrescentado.
O que desejamos indicar aqui é que, na verdade, o capítulo 11 é o apóstolo sintetizando toda a sua temática, quando, então, começa a finalizar a carta. Ele apresentou Cristo "coroado de honra e de glória". O Filho de Deus em singularidade de filiação; e, então, mostrou o propósito Divino de se assegurar e de levar muitos filhos à glória, não em relação à Deidade, mas no sentido de se tornarem participantes de Sua encarnação, e isso através da "adoção". O Apóstolo mostrou que tudo em relação a Deus nesta dispensação é de natureza espiritual e celestial, e não mais temporal e terrena. Ele insistiu que a plenitude espiritual em Cristo é o objetivo do chamado do crente, e que é terrivelmente possível fracassar em relação a isso, com graves consequências.
Agora, quanto a tudo isso, e seus valores para o povo de Deus, ele mostra, através de exemplos triunfantes, que a fé é o elo entre o chamado e o destino, entre o propósito Divino e sua realização.
é que o povo de Deus é provado por sua posição. Não há mais teste de posição além daquele a que os crentes são chamados nesta dispensação. Deus não nos prometeu nada nesta terra nesta dispensação que possamos reivindicar perante os homens, a literal e material justificação do nosso abandono de tudo por causa dEle. Quanto mais nos aproximamos do propósito Divino, mais longe ficamos daquilo que pode estar "escrito", apontado e anunciado como resultado de nosso trabalho. Tais coisas pertencem aos estágios elementares da vida, e Deus nunca os prolonga. Seu trabalho mais sólido e duradouro acontece no subterrâneo, onde o caçador de sensações não consegue alcançá-lo, e onde, ao departamento de publicidade, ficará difícil publicá-lo. Se a fé é realmente fé, e se no tempo do fim a fé deverá ser bem mais desafiada do que o foi em outros tempos (e as Escrituras enfaticamente dizem que assim será), então, na consumação de todas as coisas, haverá muito menos espaço para a fé de vista do que houve em outros tempos. Mas este princípio permanece válido em todos os tempos quando Deus está à procura de algo que não seja superficial. As pessoas mencionadas em nosso capítulo foram todas provadas por sua posição. Isto é muito claramente visto em Abraão, e em Israel com Moisés. Deus estava lá e agia na linha das respostas materiais à fé, mas eles foram severamente provados pela posição em que foram colocados por Deus.
Agora estamos numa era espiritual, e é este fato que constitui a prova que poucos cristãos estão aptos a aceitar. Se algo se torna grande, ou se pode se tornar grande: se nomes e títulos de fama e importância mundial o patrocinam, ou se podem ser persuadidos a fazê-lo: quanto resulta disso tudo! Quão gratificante é para a carne quando as coisas parecem estar indo bem! Sim, ainda somos muito apegados a este mundo, e não conseguimos ver quão insignificante fica a maior coisa aqui da terra quando vista a mais de dez mil pés de altitude, para não falar do trono de Deus e de Sua medida espiritual.
O que o nosso escritor está realmente dizendo é que a verdadeira medida é a da fé, porque o reino no qual somos agora chamados é aquele em que não há nada fora da fé. O primeiro estágio agora é o da fé, e assim o é em todo aumento subsequente. A dispensação toda é um imenso avanço para o alto no pensamento Divino, e isso estabelece um pano de fundo para algo muito mais interno do que antes. Nas dispensações anteriores tudo era exterior e tangível - sacrifícios, altares, locais de reunião, sacerdotes, paramentos, festas, recompensas, etc.; mas na presente era, todas essas coisas são reunidas no abrangente "Em Cristo", e são essencialmente aspectos espirituais do Único Homem Celestial, a ser conhecido, apreciado e compreendido apenas pela fé. As longas gerações de satisfação emocional em coisas religiosas estavam no sangue desses Hebreus, os quais ansiavam pelo sistema físico, emocional, visual e auditivo do passado. Assim, tudo o que é dito desde o início da epístola é levado ao mais espiritual de todos os atributos - a fé, a qual opera pelo amor.
As sobrecargas que impedem o desenvolvimento da corrida do capítulo 12:1 são os aspectos legais da Lei externa. O "pecado que tão de perto nos rodeia" é a dúvida ou a incredulidade, e a "infidelidade"; porque "tudo o que não é de fé é pecado".
Assim, o pecado, nesta carta, é visto não como uma questão de moralidade, mas de quanto nós invertemos a natureza da dispensação, colocando elementos temporais e ideias humanas no lugar do espiritual. Talvez nunca tenha ocorrido a muitos cristãos que, nesse contexto, rituais, vestimentas e insígnias e formas eclesiásticas possam ser pecado, por minarem, suplantarem e enfraquecerem a verdadeira espiritualidade, pois, ao invés de ajudarem a fé, apenas atuam como muletas que impedem as pessoas de terem "os seus sentidos (faculdades espirituais) exercitados" (Hb 5:14).
Isso nos leva em sequência ininterrupta de pensamento ao que está (em nossas infelizes divisões mecânicas de capítulos) no capítulo 12. Aqui os "pais da nossa carne" e o "Pai dos espíritos" são confrontados. Disciplina de crianças para que sejam "recebidas como filhos" (literalmente, "sejam colocadas na condição de filhos") tem a ver com o nosso espírito; não em primeiro lugar com os nossos corpos ou nossas almas. O espírito é o próprio homem novo com o qual Deus está ligado através do novo nascimento. Todas as atenções paternais de Deus estão voltadas para este "homem interior do coração". O espírito realmente não pode ser alimentado com coisas temporais. A alma pode ser grandemente estimulada através de bênçãos do reino temporal, mas é aqui que uma das distinções mais vitais e de maior alcance é feita pela Palavra de Deus, uma distinção das mais dolorosamente negligenciadas por vasta maioria de cristãos, especialmente pela maioria dos líderes cristãos. Acredita-se que se houver muito estímulo da alma através da emoção, do sentimento e do "zelo" ou entusiasmo: razão, argumento, informação para a mente, e ação, trabalho, impulso, volição, que isso essencialmente é a marca de uma vida espiritual. No Novo Testamento, é o contrário; havia uma profunda obra interior do Espírito Santo naqueles dias, antes dos efeitos - a instrução ou ensino, o zelo e as obras. Colocar a carroça na frente do cavalo nessa questão pode ser apenas uma grande ilusão de Satanás, pela qual ele produz as reações mais mortíferas, de modo que o depois seja mais desesperador do que o antes. A esta altura, pode ser bom lembrarmos de que, na conquista do homem, o alvo de Satanás foi a alma humana - razão, argumento, desejo, sentimento, volição, escolha, ação. Através de sua alma o homem se enveredou por um caminho de incredulidade, o que acabou separando o seu espírito da comunhão com Deus. (Deus é espírito, não alma. Quando Deus é referido como tendo alma, isto é apenas uma maneira de falar segundo a linguagem humana, mas isso não reflete realmente a verdade a respeito de Deus.) A anulação ou a destruição das obras do diabo no homem se dá através do renascimento do espírito do homem em união com Deus pelo Espírito Santo, e, uma vez "ligado ao Senhor, formando um só espírito com Ele", isso leva o homem espiritual ao pleno crescimento (Hb 5:14, 6: 1; RV) trazendo, assim, a alma em sujeição com seus humores, variações, e sua inerente fraqueza na direção à dúvida. O "domínio" do capítulo 2 está agora reservado para pessoas espirituais, e este é o coração de toda a Carta aos Hebreus, bem como de todo o Novo Testamento em sua múltipla aplicação.
O "posicionamento como filhos", que é o propósito da "disciplina infantil", isso é "crescimento espiritual pleno". Aqui está a ligação entre os capítulos 11 e 12. Não foi apenas o que aqueles heróis da fé fizeram através da fé, mas sim o que eles alcançaram. A meta da comunhão com Deus é "perfeição". A palavra "perfeito" (no grego: "completo") é usada oito vezes nesta carta.
"Tornar perfeito o Autor da salvação deles" (2:10). "Tendo sido aperfeiçoado, tornou-se ... o Autor da salvação eterna" (5:9). "A lei nada tornou perfeito" (7:19), etc., e assim, tendo mostrado o objetivo de Deus, e incidentalmente desta carta, o escritor nos leva a duas afirmações consumadas:
a. "Para que eles sem nós não fossem aperfeiçoados" (11:40). b. "Mas chegastes ... aos espíritos dos justos aperfeiçoados" (12:23). Deixamos o segundo para depois, só observando novamente onde está a perfeição.
Assim, com toda fé que eles tinham, em sua multiforme e maravilhosa expressão, duas coisas ficam salientes:
a. Eles "não alcançaram a promessa", mas "morreram (ainda) na fé". Eles aguardavam a perfeição ou completude; o fruto pleno da fé deles ainda tinha que amadurecer para ser colhido. b. "Os espíritos dos justos aperfeiçoados." "Para que eles sem nós não pudessem ser aperfeiçoados" (tornados completos).
Nota: Não se trata de completude numérica; que precisávamos ser adicionados a eles. Isso pode ser verdade, mas não é o sentido aqui. O que está em questão é a própria completude deles.
Algo aconteceu, então, entre a morte deles e a chegada do nosso tempo. Sim; a fé deles, em essência, era prospectiva. Ela olhava para frente. Veja as afirmações sobre isso no registro do capítulo 11, etc. Para onde este capítulo apontava? Bem, com maior ou menor clareza e definição, apontava para o Cristo, o Defensor, Redentor e Príncipe deles. Este vínculo de fé - não fé abstrata, mas seu Objeto Divino - transformou a fé numa fé justificadora; "foi contada como justiça." Por isso eles são homens "justos" ou justificados, e a fé deles os levou ao longo dos séculos para o Justificador, para os nossos dias; e na "perfeita" (acabada, plena e final) obra e palavra de Deus em Cristo (Hb 1: 2) eles, juntamente conosco, são tornados completos, e seus espíritos estão no descanso da fé.
Assim, "a fé é a certeza (confiança, dar substância a) das coisas que se esperam, uma convicção de coisas que não se veem". Alguém traduziu como "a escritura" de coisas que se esperam. Então, a herança é agora - finalmente - alcançada.
Em nosso próximo capítulo, teremos algo mais a dizer sobre esse assunto, com base no capítulo 11, à medida que avançamos para a segunda parte do capítulo 12.
Em consonância com o desejo de T. Austin-Sparks de que aquilo que foi recebido de graça seja dado de graça, seus escritos não possuem copirraite. Portanto, você está livre para usá-los como desejar. Contudo, nós solicitamos que, se você desejar compartilhar escritos deste site com outros, por favor ofereça-os livremente - livres de mudanças, livres de custos e livres de direitos autorais.