por T. Austin-Sparks
"Tendo Deus... falado... pelos profetas... de várias maneiras" (Hebreus 1:1).
Nosso objetivo nesses capítulos será ver o que essas diversas vozes e maneiras de Deus falar significam para nós em nosso tempo e em nossas vidas: não será um estudo completo dos profetas, mas apenas uma mensagem saliente para a nossa instrução, conforto, direção e, talvez - aviso.
A declaração feita pelo Apóstolo Paulo na primeira citação acima é uma declaração bastante surpreendente e arrebatadora, que, por si só, torna-se uma mensagem e um aviso vindo dos profetas. Ela diz precisamente que todos os sábados, por um longo período de tempo, os profetas eram lidos nas reuniões, em grandes centros como Jerusalém, bem como em inúmeras sinagogas distantes, e, enquanto as palavras eram lidas e ouvidas, enquanto os profetas eram falados por meio dos principais e sacerdotes chefes, as pessoas e seus principais, “não conheceram as vozes dos profetas”. Conheciam as palavras, as escrituras, os sons, os tempos, porém, a ‘Voz’ permaneceu imperceptível e indetectável; o significado interior, a mensagem vital, o objeto inclusivo, permaneceu irreconhecível. E não apenas isso. O resultado trágico de toda audiência foi uma violenta, positiva e grave contradição; um feito, de fato, porém um feito apenas ao contrário daquilo que os profetas queriam dizer ao povo em questão. Eles deveriam ter sido beneficiados com as ‘vozes’, porém, foram condenados.
Assim, já desde o início, somos desafiados, quanto ao resultado, a colocar toda a nossa atenção e valor em tudo aquilo que tem chegado a nós. Qual será o veredicto quando as ‘vozes’ não mais forrem ouvidas? Contudo, é importante que estejamos cientes da questão sobre a qual irão repousar o juízo final e o veredicto. A partir de muitas escrituras, e focados em Hebreus 1:1, esta questão é claramente declarada ser o lugar e a medida dada a Jesus Cristo, o Filho de Deus. Esta é a questão consumada em nossa citação básica de Atos 13:27: "Eles não o conheceram". Jesus disse que todos os profetas falaram dele. Os profetas tinham muito a dizer acerca de muitas coisas: idolatria, más condições morais, religião meramente formal e externa, etc., mas Jesus viu e apontou para Si mesmo em todos os profetas, e, finalmente, tornou o significado dos profetas em algo pessoal em relação a Si mesmo. Todo juízo final irá se voltar não para a questão dos pecados, mais ou menos, poucos ou numerosos, mas para o lugar e a medida dada a Cristo. Assim, a questão associada ao ouvir os profetas, isto é, as Escrituras, é a seguinte: quanto de Cristo tudo isso resulta em nós. Não me refiro a uma ou muitas daquelas coisas que compreendem o Cristianismo, mas ao grau de Cristo em nós. Nos profetas do Velho Testamento temos o lugar de Cristo. No Novo Testamento temos não somente o lugar de Cristo, mas a Sua medida em nós.
Todas as Cartas do Novo Testamento (as epístolas) estão primariamente ligadas à medida de Cristo nos crentes, tanto individualmente como coletivamente. Este resultado final é, de acordo com Atos 13:27 e outras Escrituras (tais como Isaías 6:9,10, e Apocalipse 2:7,11,17,29, etc.), uma questão de ouvir espiritualmente, ou "um ouvido para ouvir o que diz o Espírito". Quantos, como esses acima referidos, estão ouvindo as Escrituras como tais, talvez até mesmo “todos os sábados”, porém estão fracassando em ouvir ‘a Voz’. É com o objetivo de captar a voz dos profetas que ensaiamos considerá-los, bem como as suas mensagens. Esta palavra preliminar é importante para que não fiquemos apenas com a ‘letra da Palavra’.
Observemos que o fracasso das pessoas acima referidas, e as suas consequências, não foi porque os profetas eram infiéis. Embora seja verdade, em muitos casos, que as pessoas pudessem estar numa posição trágica e patética devido aos seus mestres e líderes não serem fiéis, porém, este não é sempre o caso. O fato de uma criança não passar nos exames da escola não pode ser honestamente atribuído sempre ao professor. A criança pode ser preguiçosa, indolente, descuidada, rebelde, etc. Além do que, até o melhor e mais meticuloso professor também possui as suas falhas. Os profetas deram tudo o que eles tinham, mas ainda assim, o terrível veredicto de Atos 13:27 foi verdadeiro. A culpa recaiu sobre os ouvintes.
Como você pode perceber, ao iniciarmos com o profeta Jeremias, não estamos seguindo a ordem cronológica bíblica. Isso porque não estamos aqui preocupados com a história, com a geografia, nem com a cronologia dos profetas, mas sim, acima de tudo, com a mensagem espiritual. A mudança na ordem é simplesmente porque, no momento, somos pressionados pelo senso de que Jeremias é aquele que chega mais próximo ao cerne da necessidade espiritual. Aqui está o homem como ele é, em seu próprio sofrimento, e isso domina o livro todo. Enquanto em Isaías e Ezequiel temos nações, governantes ... e a preditiva e messiânica visão tão à vista, em Jeremias temos menos desses aspectos, por estar ele mais ocupado com o curso presente e imediato das coisas. Isso de forma alguma é a verdade toda, mas é algo comparativo. E o que mais impressiona o leitor é a angústia pessoal deste profeta, não importando o que ele possa falar sobre as nações nos capítulos 40 a 51.
A mensagem vem realmente do próprio profeta. Isso é verdade em relação a todos os profetas, como veremos. A personalidade de Jeremias fica mais em evidência do que a de qualquer outro dentre os Profetas Maiores, e muitos dos chamados Profetas Menores. Através de sua personalidade, grandes verdades foram convertidas em vida espiritual. Embora muito da mesma natureza possa ser dito de outros profetas, de Jeremias, talvez, seja verdadeiro dizer que nenhum homem esteve tão integrado a sua mensagem como Jeremias. Sua mensagem foi literalmente espremida nele da mesma forma como a uva é espremida no lagar.
Lembremos de que a função dos profetas era preeminentemente a de manter claro e poderoso diante dos homens como Deus é. Se mantivermos isso em mente, teremos a chave de cada profeta. Deus é multifacetado. Tem sido dito que “há base para se crer que a figura do sofrimento do Servo do Senhor, levantada pelo Grande Profeta do Exílio, e a ideia do valor da expiação e redenção de Seus sofrimentos, foram, pelo menos em parte, frutos de meditação sobre o abandono espiritual, de um lado, e, de outro lado, sobre a passional identificação de si mesmo com as tristezas do seu povo pecador, deste, Jeremias foi o mais semelhante a Cristo dentre todos os profetas”. Certamente Jeremias prefigurou alguém maior do que ele, “um homem de dores, experimentado no sofrimento". Falamos que Deus é multifacetado. Talvez fosse melhor dizer que Deus é amor, e o amor de Deus é multifacetado. Há o sofrimento do amor; o zelo do amor; a ira do amor; a visão e a compreensão do amor; sim, e a repulsa do amor; etc. Jeremias foi a corporificação dos sofrimentos do amor – do amor de Deus.
Antes de adentrarmos nas causas e razões do sofrimento de Deus, vamos olhar para o homem em si, para o seu chamado e vocação. Há muito aqui para ajudar todo servo do Senhor que precise tomar um caminho impopular, assumir um arado solitário, resistir à forte corrente contrária, e sustentar um testemunho indesejável. Jeremias pode ser uma grande inspiração para todos nós.
Não podemos fazer mais do que apenas dar alguns extratos de uma importante “introdução” a Jeremias, do então Dr. Alexander Stewart. Ele escreveu:
"Jeremias teria herdado a tradição de um ilustre ancestral, e a primeira fase de sua vida teria sido moldada por distintas influências religiosas da comunidade a que ele pertencia. Deus, contudo, ‘provera algo melhor’ para ele, do que apenas desperdiçar os seus dias servindo nos altares de um sacerdócio proscrito e degenerado. O jovem filho de Hilquias tinha sido ungido para o grande destino de ser um profeta do Senhor em um dos dias mais difíceis na história do povo escolhido....
"Aquela palavra (do Senhor) tornada conhecida a ele, principalmente a de que ele tinha sido escolhido por Deus para o ministério profético antes de haver ele visto a luz deste mundo (Jer. 1:5). A palavra que constituiu a sua ordenação ao ofício revelado a ele ao mesmo tempo que a sua predestinação a esta alta honraria. E isso não foi tudo. A revelação divina também fez menção a uma preparação para as tarefas que demandariam sua energia; uma preparação que se estendia a um passado misterioso, até que, pelo menos em seu ponto de partida, recebeu o selo da eternidade, e incluiu dons de ... consagração espiritual que precediam a disciplina de sua experiência consciente ... sua obra seria excepcionalmente extensa em suas atividades, e, na sua maior parte, intensamente dolorosa em seu caráter ... sua comissão era ‘arrancar pela raiz, e derrubar, e destruir, e lançar por terra, e edificar e plantar’. Os dois últimos termos indicam um propósito generativo ... mas, a maior parte de sua obra teria natureza destrutiva. Esses dois propósitos naturalmente seriam alcançados por Jeremias, na qualidade de instrumento do poder irresistível do Senhor.
"Um segundo fato notável em relação ao chamado de Jeremias é o seu próprio encolhimento ante a missão que ele teria de enfrentar. 'Ah, Senhor Deus', clamou ele, 'eis que eu não sei falar, pois sou uma criança' (1:6). Naturalmente ele não era uma mera criança, no sentido literal, pois ele devia ter mais de vinte anos de idade; mas ele se sentiu uma criança em conhecimento, em experiência, e ele estava especialmente apreensivo, sentindo-se incapacitado para o ministério profético por conta da falta do dom da expressão....
"É uma ilustração notável do agir misterioso da vontade soberana de Deus que Jeremias pudesse ter sido escolhido como ‘um profeta para as nações’; um homem aparentemente tão incapacitado, por temperamento e aptidão, para esta tremenda missão.
"Uma terceira característica de vital importância em relação ao chamado de Jeremias é o equipamento especial que ele recebeu para a missão de sua vida. Este equipamento foi simbolizado pelo toque da mão divina em sua boca, uma ação que foi acompanhada pela garantia explicativa: ‘Eis que ponho as minhas palavras em sua boca’. (2:9)....
"O equipamento de Jeremias incluiu também uma mensagem do Senhor que estava particularmente adaptada a sua necessidade. Consistia, em primeiro lugar, de uma palavra de comando em resposta ao seu protesto de inaptidão. (1:7). O duas vezes repetido ‘Tu’, desta solene incumbência - 'Tu irás', e Tu falarás’ – afastou as objeções do profeta, deixando claro para ele que ele deveria se submeter incondicionalmente à autoridade de seu Mestre Divino, no que diz respeito à esfera do seu trabalho e ao caráter de sua mensagem. Mas a palavra de comando foi seguida por uma palavra de encorajamento gracioso: 'Não temas a face deles; pois eu estou contigo, para te livrar'. Rostos hostis certamente haveria bastante – sobrancelhas abaixadas por causa do ressentimento, olhos piscando de ódio, e lábios curvados devido ao desprezo ou à clamorosa denúncia; mas aqui estava uma promessa da própria presença do Senhor por todos os dias, e isso, para Jeremias, era uma garantia de força e proteção em meio a todas as dificuldades e perigos de seu futuro ministério. O profeta certamente precisava de uma grande dose de coragem, pois, pouquíssimos homens já foram confrontados por uma missão tão formidável".
Se prestarmos atenção nos tempos em que o nosso profeta teve que cumprir o seu ministério, compreenderemos melhor as suas dificuldades, e, talvez, não fracassaremos em reconhecer algumas similaridades com os nossos tempos, dando, assim, uma ênfase maior à “Voz”.
As características do tempo de Jeremias (também verdadeiro em relação a todos os profetas) eram:
1. Declínio espiritual
A graduação e a diminuição dos valores e padrões verdadeiramente espirituais. A perda do significado interior e celestial das coisas divinas.
2. Formalismo religioso
Religião, sim. Todas as externalidades, formas e técnicas estavam lá. As Escrituras tinham sido perdidas, mas uma tradição – de tipos e de medida – ainda permanecia. A religião entrou por um bolso, mas a aplicação vital saiu por outro. Jeremias – falando por Deus - disse: "Eles deixaram a mim, o manancial de água viva, e cavaram para si cisternas rotas, que não podem reter a água." (grifo nosso)
3. Degeneração moral
Houve um perfeito deslizamento dos padrões morais na nação. A veemência do ódio demonstrada contra o profeta foi, em grande parte, devido ao seu alto padrão de pureza moral e espiritual, e essa veemência mostrou quão longe a nação tinha ido em sua degeneração moral.
4. Obsessão comercial
O critério de sucesso tinha se tornado aquele do ganho material e comercial. Aqui tinha ocorrido uma distorção satânica. Embora a prosperidade material e o progresso fossem uma marca da benção de Deus naquela velha dispensação, como sinal da aprovação divina de fidelidade ao Seu pacto e a Sua palavra, porém, agora o ganho tinha se divorciado da vida santa. Assim, o mundo e seu negócio tinham se tornado inimigos da vida espiritual, corrompendo-a. A mentira ardilosa do grande enganador era que, se você tivesse meios, dinheiro, posses, etc, você podia servir a Deus com eles. Porém, os profetas diziam: “Não, nunca!” Deus disse “Fora com isso; não aceitarei nenhuma ovelha dos seus rebanhos, nem boi de suas tendas. Vossos ouros e pratas estão poluídos."
"Grande negócio", absorção comercial, podem se tornar uma grande fascinação, uma obsessão, um ladrão do progresso espiritual.
5. Desastre pendente
Havia sinais ameaçadores por toda a parte. As nações estavam em guerra e agitadas. Caía um reino após o outro. Novos poderes levantavam-se das cinzas do poder anterior. A atmosfera estava cheia de ameaças. A única solução era empregar mais ferocidade e violência. O desastre não era algo estranho à consciência. Ninguém tinha qualquer sensação de segurança ou garantia de permanecer vivo. Sob tal condição, principalmente focada sobre Jerusalém, as pessoas reagiam com uma falsa coragem, temeridade e presunção. Assim, Jeremias, que mantinha o iminente julgamento em vista, foi acusado de ser um traidor, sendo lançado no calabouço, a fim de que se calasse. Suas advertências tinham encontrado rostos mais duros que uma pedra. (2:23,35; 7:28). A culpa foi repudiada, e a correção, rejeitada.
E aí, por um momento, temos que deixar o assunto, e voltarmos a considerar mais plenamente o ministério do profeta. Esta “Voz” certamente tinha algo – e ainda tem hoje – a dizer a toda testemunha e servo duramente espremidos por Cristo. O valor – naturalmente – somente serão alcançados por aqueles que, como Jeremias, são tentados a desanimar e a sentir a impossibilidade da situação.
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