por T. Austin-Sparks
Capítulo 2 – A voz de Jeremias
"Quando se completarem os setenta anos, castigarei o rei da Babilônia e a sua nação, a terra dos babilônios, por causa de suas iniquidades", declara o Senhor, 'e a deixarei arrasada para sempre" (Jeremiah 25:12).
"Agora, no primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia, para que se cumprisse a palavra do Senhor dada aJeremias, o Senhor despertou o espírito de Ciro, rei da Pérsia, para que fizesse uma proclamação por todo o seu reino..." (2 Crônicas 36:22, Esdra 1:1 em diante: ver também Isaías 45:1-8).
Eis aí uma vindicação de Jeremias. Mas ele não viveu para vê-la cumprida. Aí reside uma das coisas mais desafiadoras que um fiel servo do Senhor pode ter que aceitar. Jeremias tinha que cumprir o seu ministério sabendo que, no que dizia respeito ao seu próprio tempo e povo, aquilo seria um aparente fracasso; ele não viveria para ver cumprida esta parte de sua comissão - "edificar e plantar" (Jeremias 1:10). Quantos servos do Senhor não foram chamados para segui-Lo neste caminho tão inquisitivo e desafiador! Tanto eles, como o próprio Senhor, tiveram que fazer o seu trabalho para um tem vindouro. Nós observamos o aparente fracasso na própria vida terrena e trabalho do nosso Senhor, quando "Ele foi crucificado em fraqueza”. Vemos a deserção, a renúncia, o descrédito e o descontentamento que marcaram os últimos dias do curso terreno do Apóstolo Paulo. Que plêiade de heróis da fé solitários compõe esse tão nobre exército de homens desprezados e rejeitados" sobre os quais foi passado o veredicto ‘Não valeu de nada!' Porém, se o ministério e trabalho deles tinham algo de Deus, então esse elemento é eterno, imortal; irá viver novamente: Deus irá vindicá-lo, e "os homens de Anatote" (Jeremias 11:21,23) serão os únicos sobre os quais a história e a eternidade irão acumular vergonha. As lágrimas de Jeremias irão – como diz o salmista – ser guardadas nas taças de Deus. Esta é uma das “vozes dos profetas” que, embora não ouvida pelos apáticos ouvidos espirituais, será gritada para que todos a ouçam através dos eventos da história. Esdra e Nemias, e as visões de Daniel em cumprimento, serão a resposta ao ministério rejeitado de Jeremias.
Ciro pode ser um pagão, sem qualquer conhecimento pessoal do Senhor, mas sua solicitude irreligiosa pelos interesses de Deus irá declarar de uma vez por todas que, embora Jeremias possa ser ignorado, o Deus que o chamou e o ungiu não pode ser rejeitado. Se há uma voz que grita a partir do livro de Jeremias é a voz da Soberania Divina. O livro inteiro pode ser resumido nas palavras do Senhor ao seu servo na casa do Oleiro: "Não posso fazer com você...? (Jeremias 18:1-11). A Soberania de Deus é algo irresistível. Pergunte a Jerusalém e à nação judaica sobre aquele ano 90 A.D., quando as palavras soberanas de Jesus Cristo, como registradas em Lucas 19:41-44, foram literalmente cumpridas.
Tanto mais, então, em relação à ‘voz’ inclusive de Jeremias. Mas quais foram algumas das coisas que o nosso profeta teve especificamente que enfrentar e clamar contra? Podemos colocar isso numa frase: Ele clamou acerca de certos contrastes básicos e fundamentais. Chamamos a atenção para três:
Este é um contraste que o Senhor veementemente chamou de “mal” - "O meu povo cometeu duas maldades; a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas" (Jeremias 2:13). Fiquemos devidamente impressionados – antes de prosseguirmos – com o julgamento do Senhor sobre este procedimento alternativo, é mal! O Senhor diz que isso é um mal que está no fundamento.
Há vários aspectos dessas alternativas.
(a) A característica de Um (o Senhor) e a característica de muitos: a Fonte, e as muitas cisternas.
Aqui nós temos uma voz de profeta que, tendo sido esquecida, resultou em – não só na ruína de Israel – mas, em grande parte, do Cristianismo organizado, e não está ausente no Cristianismo evangélico. É uma questão para a qual a Bíblia dá a mais séria atenção, e sobre a qual o Novo Testamento está, em grande parte, construído. Não é outra questão senão aquela da auto-suficiência de Deus, por um lado, e de outro, os muitos dispositivos humanos. É a exclusiva e final plenitude de Deus, ou – alternativamente - a independente e sobressalente cisterna do esforço humano. Este e princípio inerente à Fonte ou às muitas cisternas escavadas. Em quanta obra e atividade cristã tem essa questão se tornado uma realidade! Desde os primórdios do relacionamento ativo do homem com Deus tem havido esta propensão incorrigível de o homem “estender a sua mão” e colocá-la de forma possessiva ou controladora nas coisas de Deus. Provavelmente este foi o pecado de Satanás (de Lúcifer) que o levou à queda, e foi essa a essência que ele usou para tentar e enganar Adão. É por isso que Deus chama isso de ‘mal’. É o mal de dividir o lugar de Deus; de insinuar a independência do homem, e de implicar a capacidade do homem. Isso está no coração do humanismo, da autocracia, da ditadura. É a essência do termo simbólico tão frequentemente referido no Novo Testamento – “a carne”. É o princípio do ‘coração incircunciso’, que – como os ‘Filisteus incircuncisos’ – se insinua nas coisas de Deus. É muito significativo o fato de que os Filisteus só foram finalmente subjugados quando Davi assumiu preeminentemente o trono. A mão deles era contra o trono. Somente quando Cristo for o Senhor absoluto é que esta tendência a auto-afirmação será anulada.
O que representam essas muitas “cisternas” em suas formas e naturezas é algo incontável; são muitas as coisas produzidas pela força, inteligência e ingenuidade humana para que se possa ordenar e catalogar.
Há uma razão bastante séria e prudentemente solene por Jesus, após ter dado a ordem e a comissão a seus discípulos de irem por todo o mundo, ter acrescentado: “ficai ... até que do alto ejais revestidos de poder" (Lucas 24:49); "Ele ordenou que não partissem ... mas que esperassem pela promessa do Pai" (Atos 1:4). A comissão de ir ao mundo jamais deve ser tomada na base da energia natural. Somente o Espírito Santo, e isto como um pouco de história pessoal, deve ser a fonte da obra de Deus.
(b) Outra diferença é indicada em nosso texto.
As cisternas cavadas pelo homem não conseguem “reter água” Talvez a ênfase deva ser colocada sobre a palavra “reter”. Elas estão ‘vazias’ porque vazam. Precisam ser repetida e continuamente enchidas artificialmente. Seus cavadores estão envolvidos com árdua tarefa de encontrar e repor os recursos. Eles conseguem água, mas ela escapa, e a secura exige mais e mais esforço humano para impedir o vazamento. Que descrição verdadeira sobre tudo aquilo que procede dessa atitude humana de colocar as mãos na obra de Deus! As cisternas do homem realmente são cisternas que vazam. Por outro lado, existe a Fonte - cheia, completa, inesgotável e sempre fresca; jamais fica estagnada.
"A água que eu lhe der se fará nele uma fonte a jorrar para a vida eterna" (João 4:14).
"Do seu interior correrão rios de água viva" (João 7:38).
Que coisa maravilhosa é ter um céu aberto, e jamais ter que ‘cavar’ uma mensagem, um discurso, um ministério, um empreendimento! Foi contra essa desgastante, decepcionante e laborosa vida que Jeremias testificou, e a sua “Voz” precisa ser ouvida, pois algo muito terrível tem limitado a vida do Senhor. A plenitude é sempre uma marca do prazer do Senhor.
"O que tem a palha com o trigo, diz o Senhor (Jeremias 23:28 AV).
O primeiro contraste favorável ao ministério de Jeremias tinha a ver com a fonte de vida do povo de Deus; o segundo, com a ministração a eles, com o ensino. Este desafio e interrogação direta do “Senhor dos Exércitos”, como mostra o contexto, foram direcionados aos falsos profetas. "Tenho ouvido o que dizem os profetas", etc. (verso 25 em diante). Os profetas diziam ter uma visão, um sonho, uma revelação da parte do Senhor, porém, tudo aquilo era vazio e irreal como a palha.
Quais são as características da palha? A resposta a esta questão vai provar se o ministério é do homem ou é de Deus; se é falso ou verdadeiro. Observe que a conexão imediata aqui é aquela da Palavra de Deus, e o que está indicado em todo o parágrafo é que há muita coisa que alega ser Palavra de Deus, mas que, na verdade, não é. Entre aquilo que é oferecido como sendo Palavra de Deus e aquilo que realmente é Palavra de Deus existe uma grande diferença, tal qual há entre o joio e o trigo.
(a) A palha é tão leve e tão sem substância que pode ser facilmente levada pelo vento, de modo a não mais ser encontrada novamente. Ela possui pouco peso espiritual. É um ministério que serve apenas para agradar e dar comichão nos ouvidos. É algo completamente superficial, sem profundidade. Não há nada de sólido a respeito dele; não há ‘corpo’. É bonito, inteligente, discursivo, de discurso fácil, difuso, porém, não possui poder algum.
Jeremias combatia fortemente contra esses homens que ofereciam algo tão inconsistente para um povo tão necessitado.
(b) Juntamente com esse aspecto, segue-se o fato de que a palha engana. Ela possui uma aparência de trigo, estando associada a ele, porém, não é trigo. É um fingimento e não uma realidade. Possui uma linguagem, uma fraseologia, os termos, mas é diferente do trigo, e por isso, engana. É algo que fica do lado de fora, e não resiste à realidade.
(c) A palha não é alimento. Ela jamais irá satisfazer. Desnutrição espiritual será o resultado de tal dieta. Nela não há propriedade nutricional nem construtiva. As almas famintas procuram, mas não são alimentadas. Elas têm fome de pão. O tipo da pessoa, em relação a sua medida espiritual, irá nos mostrar com o que ela tem sido alimentada.
A real Palavra de Deus é diferente da palha em todos os aspectos acima. Ela é eficaz. Observe o que se segue em nosso texto. Uma série de outros contrastes está implícita.
"Não é a minha palavra como fogo? Diz o Senhor."Ela queima, derrete, purifica e prova.
"E como um martelo que esmiúça a rocha? "Mais cedo e mais tarde a palavra verdadeiramente dada por Deus irá desfazer toda resistência e auto-confiança. Jesus disse: "A palavra que vos digo, essa o irá julgar no último dia”. (João 12:48). O verdadeiro ministério do Senhor edifica, satisfaz, reside, e – no tempo ou na eternidade – determina.
A advertência final no ministério como na “voz” deste profeta é “fidelidade” - "Fale a minha palavra com fidelidade".
O próprio Jeremias foi um grande exemplo disso, mais do que qualquer um antes ou depois. A fidelidade foi algo que lhe custou muito caro. Custou-lhe rejeição, ostracismo, espancamento, calabouço lamacento, vergonha, opróbrio e muito mais; mas Deus o vindicou na história, e, diga o que quiser sobre a sua ‘melancolia’ e ‘pessimismo’, porém, ele está – como temos dito – muito próximo ao nosso Senhor Jesus, na condição de “servo sofredor”, mais do que qualquer outro homem já esteve. Porém, os sofrimentos dele deram os seus frutos no ‘remanescente que retornou’, e ele tem um lugar de honra no Novo Testamento. (Veja o nosso próximo ‘contraste’).
"Eis que vem dias, diz o Senhor, em que farei um novo pacto com a casa de Israel..., não conforme aquele pacto que fiz com os seus pais... o qual eles quebraram" (Jeremias 31:31-32).
A imensidade desta “Voz” do profeta pode ser detectada tanto no Cristianismo como em toda a dispensação, desde o primeiro ao segundo advento de Cristo, pois estão edificados e constituídos da mesma maneira. A Carta aos Hebreus é uma definição abrangente da natureza desta dispensação, e, no coração desta Carta repousa a mesma citação de Jeremias. (Veja Hebreus 8:6, 9:15, 12:24.)
Além disso, foi a isto que Jesus se referiu quando disse: “Esta é a nova aliança no meu sangue”. Certamente Jeremias está vindicado! O contexto de Jeremias 31:31 é aquele do “Ramo”, e este “Ramo” é chamado "Jehovah-Tsidkenu" – o Senhor justiça nossa (Jeremias 23:6, 33:16). Sobre isto repousa toda a nossa salvação – em Cristo. Isso é um assunto muito vasto para que possamos abordá-lo aqui.
O que estamos preocupados de imediato é com o contraste entre os dois pactos. Em relação ao Velho, o que precisamos é apenas ler as Cartas aos Romanos e Gálatas, a fim de ver a deplorável situação em que se encontravam os Judeus nos dias da vida terrena de Cristo. Uma palavra cobre toda a condição multifacetada, a qual era simplesmente terrível; a palavra é ‘escravidão’. É isso que o Velho Testamento produziu na vida – ou na existência. Por quê? Porque tudo estava do lado de fora! Era uma estrutura construída sobre a areia movediça da fraqueza e da depravação humana. Suas demandas apenas mostraram a impotência da natureza humana. Em sua presença o grito de um homem condenado era o grito de todos os homens: "Miserável homem que sou, quem me livrará do corpo desta morte?" (Romano 7:24). É uma longa história que quebra o coração do homem fracassado por causa da natureza humana. A justiça é a grande questão. O que significa Deus tendo tudo o que Ele tem por direito no homem, em relação ao caráter. Mas o homem não consegue corresponder a isso. Mas ele precisa! E aí temos um problema. Deus precisa ficar satisfeito, caso contrário, o homem estará condenado. Bem, este primeiramente é todo o caso para a justificação e glória.
Aqui, então, entra o Novo Testamento, cujos termos foram prenunciados por Jeremias. Há dois aspectos: um é a natureza; o outro, são os Meios.
Jeremias 31:33 – citado pelo escritor da Carta aos Hebreus: "Porei a minha lei no seu interior, e a escreverei em seu coração." Colocamos em itálico. - "interior... seu coração". Nesta dispensação tudo é interior. Isso determina se o Cristianismo é verdadeiro ou falso. Esta é a grande questão terminal representada pela Carta aos Gálatas. Quanto aos Meios – observe a letra maiúscula M – o Apóstolo Paulo tem duas grandes palavras: "Deus... quem resplandeceu em nossos corações, para a iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Jeseus Cristo"; e observe, o contexto dessa afirmação é o Velho Testamento - 2 Coríntios 4:6: e "Cristo em vós, a esperança da glória” (Colossenses 1:27).
Os Meios é Cristo dentro de nós pelo Espírito Santo.
Esta foi uma revelação salvadora para Jeremias. O livro que leva o seu nome trata exatamente disso: quão sem esperança pode ser a revelação do estado miserável do homem. Bem, pode o profeta chorar e gritar de angústia mortal! Mas não é uma desesperança eterna. O “Ramo de Justiça” irá se levantar - "O Senhor, Justiça nossa". Que ‘voz’ de profeta! 'Todos os sábados; porém, eles não o conheceram.' Desesperança dobrada e confirmada devido a dureza de coração, orgulho e preconceito.
Deus abra os nossos ouvidos interiores!
Em consonância com o desejo de T. Austin-Sparks de que aquilo que foi recebido de graça seja dado de graça, seus escritos não possuem copirraite. Portanto, você está livre para usá-los como desejar. Contudo, nós solicitamos que, se você desejar compartilhar escritos deste site com outros, por favor ofereça-os livremente - livres de mudanças, livres de custos e livres de direitos autorais.